A VINGANÇA DA TIA OZENILDA

Em 1998 eu tinha 05/06 anos e estava prestes a ir para a pré-escola. No entanto, nessa idade eu provavelmente já era da altura que sou hoje, e já ficava ridícula no meio das crianças menores.

Minha mãe então decidiu adiantar um ano letivo e me mudar de escola pra começar logo a primeira série do ensino fundamental e estar numa turma que já era frequentada por crianças do meu tamanho. 

Só que as escolas perto de casa não eram ambientes que os pais sonhavam para seus filhos.

As velhas fofoqueiras do bairro sempre cheias de pompa pra mandar na vida alheia comentavam “ai ai, não vai pra tal escola porque, só tem maloqueiro. Não vai pra outra porque, o filho da fulana tá lá e não aprende nada”

Bom, mas a gente era da cohab, não tinha como fugir de uma escola cheia de maloqueiros. E também, os maloqueiros que estavam nessas escolas eram todos meus vizinhos.

Eu poderia não estudar com eles, mas na volta da escola era com eles que eu andaria de bicicleta, compraria gelinho na doceria da Nelma e ouviria Racionais escondida da minha vó.

Só tinha uma escola perto da quebrada que era reconhecida como boa, era o Sesi.

No Sesi era outra fita. 

O uniforme era bonitão: a calça preta coladinha, tinha shorts, saia, shorts-saia, camiseta polo e moletom. 

A tia que abria o portão usava uniforme também. Mesmo padrão, camisa polo e a calça coladinha. Apito para chamar a atenção dos alunos e tudo. Até mega fone ela tinha.

Nas escolas que eu já tinha frequentado, a tia trajava sempre o outifit da igreja: Coque, pochete e saia jeans. Pra chamar atenção dos bagunceiros e dos atrasados ela só gritava mesmo: “Já é 7h10 vou fechar o portão!!!”. (O portão abria às 07h, mas ela não podia segurar por mais de 10 minutos. Ela sofria com bursite.)

O Sesi era cheio de grandeza. Havia duas quadras. Uma bem grandona aberta  e outra menorzinha fechada. Parecia o ginásio do Ibirapuera. Com cesta pra basquete, rede de vôlei, pista de atletismo e tudo.

As menininhas de lá pareciam feitas na mesma fábrica. Todas de mochila de carrinho da barbie,  fichário de pelúcia, caderno com adesivo, estojo de bichinho. Os meninos usavam fichário preto da bad boy, iam de chuteira autografada pelo Marcelinho Carioca.

Depois da aula todos faziam aula de capoeira, teatro, informática… Cara, e era só a primeira série.

Na cohab as meninas se juntavam pra dançar axé. As meninas do Sesi faziam aula de jazz e se apresentavam para os pais no anfiteatro em um espetáculo no final do ano.

Diz a lenda que a galera da oitava série do Sesi competia em campeonatos internacionais de futebol, música e dança. Era tipo o High School Musical da Água Fria.

Esse povo tinha acesso a tudo isso nos anos 90. Você tem noção?

Ninguém na época sabia direito o que era um computador, pelo menos não a galera da Rua da Cavalgada, que era a rua em frente ao meu prédio.

Na cohab mesmo tinha um menino famoso por estudar no Sesi. Era Sérgio o nome dele. E claro, todas as mães do quarteirão queriam que seus filhos fossem iguais a esse moleque. Tempos depois descobri que realmente ele era uma cara bacana, mas isso é papo pra depois.

Voltando ao assunto, para que você, caro leitor, possa ter uma idéia, pra entrar no Sesi o pai do aluno tinha que trabalhar em num sei que lá da indústria…Porque é o nome da escola, né? Serviço Social da Indústria. Alguma coisa assim.

Aí eu já pensei: Porra, que escola do caralho.  Tem que ter pai pra entrar. Vai se foder.

Meu pai nunca estava em casa. Eu tenho 28 anos,  ele com certeza deve achar que eu aínda vou fazer 19.

Fora que eu sei lá com o que ele trabalha. Ele já vendeu carro, já vendeu plano do saúde, já vendeu jornal, já vendeu cigarro também. 

Teve uma vez que ele foi comprar um lote de cigarros pra vender numa banca de jornal, ali perto da Galeria do Rock, no centro de São Paulo, e não voltou pra casa nunca mais.

E adivinha só… O Sesi não aceitava  aluno que o pai saía pra vender, ou comprar cigarros, e não voltava mais.

Outra coisa importante sobre as escolas perto da Cohab que eu ainda não mencionei, é que nenhuma delas tem nome.

Se um dia você estiver no Parque Edu Chaves e perguntar pra qualquer criança de lá “Ow filho, onde vc estuda?” Ele responde de bate pronto sem nem olhar pra sua cara “No amarelo, fi” . 

Sim, o muro da escola é pintado de amarelo e isso basta pra dar o nome ao lugar. E realmente, eu nunca soube o nome correto de lá.

Mas minha mãe é monstrona, saiu do serviço e nem quis saber de nada. Estava determinada a conseguir a minha matrícula e também a matricular os dois filhos da colega dela no Sesi, a melhor escola da região. Uma das melhores do país, talvez.

E chegando lá no Sesi ficou bem claro que seria difícil qualquer um de nós três estudar naquela escola. 

As paredes eram brancas, o piso era claro, tinha porteiro, interfone e recepcionista. Na EMEI a gente tinha a tia Neusa, que fazia todas essas funções cantando um louvor que ficava na cabeça de qualquer pessoa, fosse um cristão ou fosse um ateu.

Aliás, só de lembrar dela eu começo a cantar “Vem com Josué lutar em Jericó, Jericó, Jericóóó…”. 

Enfim, a moça que estava na recepção mostrou a brinquedoteca pra mim e para os meus amigos, que também eram uns favelados, e como boas crianças faveladas diante de brinquedos novos, saímos correndo e largamos nossas mães.

Nossas mães aguardaram por algum tempo e foram recebidas pela secretária: A Sra. Toda Cheia de Pose. Tão cheia das poses que não quis ver os candidatos a novos alunos, queria atender logo às mães e vazar.

Ela mediu as duas de cima a baixo com os olhos e já foi logo pedindo documentos, perguntando profissão, comprovação de renda e uma série de perguntas que se você é pobre e já foi barrado em algum lugar, com certeza você já ouviu e sabe do que estou falando.

Pois bem, a dona Cheia de Pose ficou lá  explicando que o padrão de ensino era muito rígido, que maus alunos repetiam de ano, que sem uniforme não entrava na escola,  que o uniforme era vendido apenas em lojas autorizadas e pá pá pá …

Minha tia percebeu a arrogância, mas não arredou, não. Ficou ouvindo tudo e concordando em silêncio.

A mulher mais brava que conheço e que até hoje chamo de tia. A tia Ozenilda. Não era irmã da minha mãe, elas só trabalhavam juntas.

Toda amiga de mãe de criança de quebrada é tia.  Ela pode te bater,  ela conta as merdas que você faz pra sua mãe te bater e se precisar ela ajuda a sua mãe a te bater.

Na cabeça dela, ela também tinha a responsabilidade em conseguir aquelas matrículas. Bom, pelo menos para um de nós.

Pois bem,  a secretária da escola olhou bem pra minha tia e começou a perguntar sobre a profissão delas…

“Nós trabalhamos numa creche” 

“Hmm… Posso ver os holerites?”

No que elas apresentaram os holerites a funcionária torceu o nariz, e eu tenho certeza que passou pela cabeça dela “hmm, gente pobre. Vou dificultar”

Provavelmente aquela mulher ganhava o mesmo salário ou até menos que minha mãe e a tia Ozenilda. Mas, a ideologia corporativa faz com que a gente assuma um personagem que muitas vezes não condiz com nossa realidade. Eu aprendi isso anos depois, ela não estava errada em agir igual a uma esnobe. Era o trampo dela, mas vou dizer aqui: sacanagem pobre tratar pobre como lixo. Isso é coisa de rico. 

Como vocês podem imaginar, ela começou a embaçar as coisas, falando de vaga limitada, de horário intermediário e um monte de coisa pra mostrar que ali não era lugar para os filhos daquelas duas mulheres que estavam sentadas na frente dela

Só que a Tia Ozenilda, ligeira que era, quando a secretária toda-toda saiu pra tirar cópia dos documentos , falou assim pra minha mãe:

“Pode esperar que eu me vingo dessa rapariga do caralho, tá tirando. Vim de longe pra esses muleque  estudar, crescer e ‘dar pra gente’. Tão pensando que vão virar nóia igual os filho da beth, mas não vão mesmo!”

Quando a secretária voltou, ela entregou os documentos e disse:

“Se surgir vaga a gente vai estar entrando em contato com as senhoras” 

Minha tia fez que compreendeu e começou a falar :

‘“Sabe, moça, a gente preza muito pela educação, porque … nossos maridos são japoneses e você sabe como a cultura nipônica é, né?”

Aí a secretária até mudou o tratamento. 

“Nossa, sério seus maridos são japoneses, e onde eles trabalham? Na indústria também? Aqui, para filhos de funcionários da fiesp, poderemos encaixar em algumas séries ainda esse ano”

Deu nem tempo da tia continuar com o deboche….

Do nada, no meio do corredor aparecem dois neguinhos com a camiseta suja de nescau, a cara suja de canetinha e os cabelos desgrenhados, correndo e gritando:

 “Mãããeee, mãããâe, mãããe, olha o Vitu, oooooo, mãããããe!!!”  

Em seguida, surge um branquelo não muito mais limpo que as crianças que estavam correndo e fazendo escândalo  com o nariz todo sujo.

Os três brincando de mostro do ranho.

As crianças eram eu e os filhos dela.  Filhos de pais ausentes  sim, mas japoneses? Jamais.

Bom, nem preciso falar que a vingança não saiu como o planejado, né?  

A gente não conseguiu a vaga. Deu tudo errado.

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